segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Um conto

Um raio de sol escapava pelo pequeno buraco da cortina que permanecia fechada há dias. A luz contrastava com o tecido aveludado, vermelho sangue, traindo a escuridão do resto da casa dando-lhe um tom crepuscular. Olhando de perto, era fácil perceber os flocos de poeira pairando no ar.


Já fazia nove dias desde que ele se foi e que os pés dela adormeciam enquanto velava a porta que nunca mais foi aberta. Tudo parecia morto. Apenas o tempo mostrava vida enquanto colocava teias de aranha nos cantos e musgo nas paredes. Ela acariciava docemente a trama do sofá e, vez ou outra, se prendia em algum pedaço desgastado do forro. Os dedos se debatiam no emaranhado dos fios como peixes capturados por alguma rede esquecida pelo seu caçador, agonizando uma espera infinita. Joana possuía mãos delicadas e pequenas, seu toque macio provava a pouca intimidade com trabalhos manuais. Tinha um lilás intenso nas unhas que já começava a descascar.


Ele não voltaria, ela sabia. Embora não aceitasse o estado em que se encontrava após a sua partida. Nunca fora assim e essa suposta fragilidade a consumia. Tantos a possuíram em sua cama e sujaram seus lençóis, tantas juras vazias foram ditas a fio, amores eternos de uma noite só. Mas com ele não. Ulisses tinha sido um dos únicos que a fizeram romper a promessa de não se deitar mais de uma vez com o mesmo homem. Apaixonou-se por Joana no momento em quem provou do seu gosto e dos seus aromas. Aceitou a condição de dividi-la com outros para ficarem juntos.

Pega, enrola, molha, branco, lilás. Era um ritual. As sextas, sem falta, Joana sentava-se à beira da poltrona para pintar suas unhas. Ulisses observava o vaivém do palito de algodão na ponta se umedecer de acetona e correr os cantos borrados de esmalte. Era como se ouvisse um segredo. No fundo ele ouvia. Seus segredos ecoavam dentro de si, sua paciência esmaecia.


Ulisses amargava sempre que Joana cruzava a porta. Havia dias em que ela aparecia com marcas de mordidas e chupões no corpo, cabelos ainda úmidos, transpirando o cheiro de sexo. Às vezes com a alça da blusa ou com a calcinha rasgadas. Ela não avisava a hora de chegar, mas era sempre pela madrugada, não cometia a injúria de dormir com os outros. Sempre que chegava, observava Ulisses que fingia seu sono, dava-lhe um beijo na testa e ia banhar-se.

Por quase dois anos tinha sido assim. Os mesmos passos, o mesmo rito, como que ensaiado. Mas teve um dia que não. Numa dessas madrugadas Joana chegou em casa, entrou no quarto e sem olhar pra Ulisses, foi em direção a um espelho grande que pendia da parede, quase sempre riscado por algum recado que ela deixava pra ele. Tirou a roupa e ficou se olhando por um tempo. Seu olhar parecia perdido no reflexo que pela primeira vez lhe pareceu intruso. Enquanto se olhava, deslizava a mão pelo pescoço sentindo a penugem fina que lhe cobria a nuca. Ulisses observava com olhos semicerrados a estranheza da fuga da conhecida rotina. E ela continuava o movimento leve, rente às orelhas, entranhando nos cabelos, segurando-lhes firmes, fechando os olhos com força, como se obedecesse a uma ordem. Parecia uma redenção. Como se aqueles espasmos ainda que sutis revelassem confissões. Ulisses pensou em interceder, segurar os ombros dela e exigir verdades. Porque não o beijou assim que chegou? O que faz em frente ao espelho? Estava na cara que essa noite não teria sido como as outras. Com quem estava? Como ousava se entregar a tal ponto? Enquanto se perdia em suas indagações, foi interrompido pelo que via, preferindo sufocar-se em silêncio para observar. Joana olhava fixo seus próprios olhos no espelho, procurava, quem sabe, onde teria se perdido. Sua mão agora descia entre os seios, fazendo pequenos círculos em torno da aureola que enrijecia. A outra percorria o umbigo e, como se dançassem, as pontas dos dedos tocaram seu sexo. Trouxe a mão até o nariz e em comunhão com si mesma, tragou do seu próprio cheiro.

O borbulhar da água fervendo. Sempre gostava de ouvir o som da panela que anunciava o cheiro do café amargo. Ulisses dormiu pouco e se levantou com o amanhecer do dia. Estava faminto, decidiu preparar algo para ocupar a fome e a mente. Enquanto observava a chama do fogo debater-se no fundo da panela, lembrou-se da noite. Ela deitara na cama sem sequer lavar seu corpo, dormiu impregnada. Embebida no cheiro de outro.

Era agosto. O tempo parecia alongar-se. Joana percorria a casa em movimentos quase mecânicos, apenas para se aquecer, para esquecer. Levantava da poltrona para a cozinha, de lá para o banho e de volta para a poltrona. Era onde dormia. Onde transpirava uma espera inerte. Cultivava olheira na face e sebo nos cabelos.

Foi num domingo. Joana ouviu o telefone que já tivera sua linha cortada, tocar três vezes. De tanto tempo sem ouvi-lo, tardou a reconhecer seu sinal. Era Ulisses, finalmente. Em um telefone mudo ela ouviu voz a promessa do retorno no silêncio de sua vontade. Preparou um banho para o reencontro com essência de jasmim, era o que ele mais gostava. Ao mesmo tempo em que esperava a banheira encher, Joana escolhia a blusa preferida de Ulisses esquecida em seu armário. Passou ferro docemente nela enquanto a dizia sobre a falta que ele fez, o quanto sentiu saudades, mas que estava feliz por ter voltado. Em passos lânguidos, caminhou até a banheira abraçada à camisa xadrez. Deitou com esmero a roupa sobre a água e fez o mesmo em seguida. Entre gemidos e espasmos, possuída pela vontade do seu amor, ela enrolou as mangas em seu pescoço, sufocando seu ultimo suspiro. E calou. Calou a agonia da sua alma. A dor da saudade. Sua sede. Sua vida.